Tive conhecimento do burburinho causado por uma prova de exame em que um dos meus poemas foi razoavelmente maltratado pelos examinadores. Queriam eles que os examinandos detectassem as sensações que eu estava experimentando quando o escrevi, porque lá digo que “vi” (e não repararam que acrescentei “mas não vi”) e que imagino os vizinhos da frente a cantarem dentro de casa (embora não tenha a certeza: “Sim, devem cantar…” traduz uma suposição).
Ora a verdade é que eu não estava experimentando sensações nenhumas: estava pura e simplesmente, como frequentemente me acontece, às voltas na cama com a minha insónia crónica. E o poema segue o curso desses esfarrapados pensamentos que me assaltavam. Bom, mas já outros comentadores disto falaram, odeio analisar os meus poemas. E também que os outros os analisem. Escalpelizar um poema implica matá-lo primeiro para depois lhe fazer a autópsia. É pior do que espetar borboletas num álbum: as borboletas, embora percam o essencial, o movimento, pelo menos conservam a beleza da cor e da forma das asas, enquanto que o poema perde tudo, beleza e movimento, como um cadáver na morgue.
Para as perguntas que fazem (ainda por cima mal feitas!) querem os examinadores que os examinandos respondam de uma certa e única maneira. Ora a Literatura, em geral, e a Poesia, em particular, não são ciências exactas, como a Física ou a Matemática. Um poema pode ser objecto de várias leituras, ao ser acolhido pela subjectividade de um ouvinte ou leitor. A relação que um poema (ou qualquer outra manifestação artística) estabelece entre autor e receptor é intersubjectiva: põe a subjectividade de um em comunicação com a do outro, desencadeando neste emoções que têm que ver com as suas vivências existenciais e culturais.
Porque é que os senhores examinadores não se limitam a pedir aos examinandos o comentário de um determinado texto (evitem maltratar poemas que não vos fizeram mal nenhum!) que lhes permita averiguar se eles sabem exprimir correctamente por escrito o seu pensamento, e, já agora, se sabem pensar?! Era isso que lhes devia ser pedido - e, antes disso, ensinado, claro!
Os examinandos submetidos à traumatizante experiência deste exame vão ficar vacinados contra a minha poesia para o resto dos seus dias. De futuro, por favor, deixem os meus poemas em paz! Há por aí tanta prosa desempregada ou mal empregada!
Ponham os pobres alunos a escrever, sem erros, com clareza e precisão, uma carta à família – que é coisa de que todos precisam, quer se destinem às letras, às ciências ou às artes.
O gosto pela Poesia, como pelas flores, pelo mar, por namorar, nasce com o ser.
Um poeta popular do meu Algarve natal, António Aleixo, disse que “não se ensina, não se aprende / Nasce e morre com a gente”. E ele é um exemplo disso. Mas comentários como o que os examinadores deste exame pretendem, ah esses podem inocular no indefeso ser dos examinandos uma definitiva aversão para com tudo o que dê pelo nome de Poesia!
E se querem impor às crianças modelos rígidos, sugiro que os ponham a fazer redacções como as do meu tempo, sobre a vaca, o mar, o porco, que começavam e acabavam sempre da mesma maneira. Por exemplo, sobre
A Poesia
A Poesia não é muito útil para a nossa alimentação.
Da Poesia fazem-se poemas e até livros. Os livros servem para pôr nas estantes, sobretudo se tiverem capas bonitas e não estiverem muito estragados.
Os donos dos livros nunca os abrem para não os estragar.
Eu gosto muito de Poesia.
Data e nome.
Foi a fazer redacções destas que me tornei escritor.
Carta de Álvaro de Campos – recebida mediunicamente por Teresa Rita Lopes